Elas Que Lucrem, August 26, 2021Conheça a organização de mulheres afegãs que enfrentou a União Soviética e o TalibãFundada por Meena Keshwar Kamal, no ano de 1977, a RAWA é a mais antiga associação feminina do paísBy Eduarda Esteves No último dia 17 de agosto, um grupo de mulheres afegãs foi às ruas em oposição à volta do Talibã ao governo do Afeganistão. “Somos mulheres, queremos nossos direitos: segurança, educação e participação política”, declararam as manifestantes na ocasião. Elas seguravam cartazes em frente a um comboio do grupo extremista e pediam: “Queremos trabalhar! Nenhuma força vai sufocar as mulheres.” Com o retorno do grupo fundamentalista ao poder, após a retirada das forças americanas, os direitos conquistados pelas afegãs nos últimos 20 anos estão em risco e elas sabem disso. Mas a resistência das mulheres do país não é algo novo. VEJA: “Me sinto uma prisioneira do Talibã e minha vida está em perigo”, diz única guia turística mulher do Afeganistão Criada no ano de 1977, a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA, sigla em inglês) é a mais antiga organização de mulheres do país que luta pela liberdade, democracia e justiça social, além de denunciar a violência contra a população feminina local. A fundadora do grupo foi Meena Keshwar Kamal, que nasceu no ano de 1957, em Cabul, a capital do país. Na época, os estudantes da capital e de outras cidades afegãs participavam de movimentos sociais emergentes que buscavam a garantia de mais educação e direitos às mulheres, principalmente o de exercer atividades políticas. Em 1979, a União Soviética invadiu o Afeganistão e deu início a uma guerra que durou quase uma década, matando mais de cem mil soldados e deixando cerca de 2 milhões de vítimas entre os civis. Antes da invasão dos soviéticos a RAWA lutava apenas pelos direitos das mulheres, mas com o novo poder no país, as integrantes do movimento se envolveram diretamente na resistência pela defesa da democracia. A cada ano, a opressão política aumentava e para que as mulheres afegãs tivessem esses direitos garantidos, Meena iniciou uma campanha contra as forças russas presentes em território afegão. Ela organizou inúmeras reuniões em escolas, faculdades e na Universidade de Cabul para mobilizar a opinião pública. LEIA MAIS: Estudantes afegãs não veem futuro no Afeganistão após tomada do Talibã “As manifestações contra os invasores soviéticos e seus fantoches e, mais tarde, contra os fundamentalistas tem sido uma marca registrada das atividades políticas da RAWA. Foi em consequência de sua luta e agitação ocupacional anti-soviética que a RAWA foi marcada pela aniquilação dos soviéticos e seus comparsas, enquanto os fundamentalistas islâmicos expressaram sua ira contra nossa organização por nossa postura pró-democracia, pró-secularista e anti-fundamentalista”, diz um texto de autoria da associação, no site oficial do grupo. Em 1981, as mulheres conseguiram lançar a revista bilíngue “Payam-e-Zan” (Mensagem das Mulheres, na tradução para o português) e por meio da publicação, o movimento passou a divulgar as causas da população feminina afegã. A revista já condenava a natureza criminosa dos grupos fundamentalistas. Meena também fundou as Escolas Watan para crianças refugiadas, um hospital e centros de artesanato para mulheres refugiadas no Paquistão com o objetivo de apoiar financeiramente mulheres afegãs. No final do ano de 1981, a convite do governo da França, Meena representou o movimento de resistência afegã no Congresso do Partido Socialista Francês. Na época, a delegação soviética no Congresso, liderada por Boris Ponamaryev, saiu da sala enquanto Meena começou a fazer o sinal “V” de vitória. O trabalho social ativo de Meena na associação pelos direitos das mulheres desagradou muita gente, Ela foi assassinada por agentes da KHAD (a organização afegã da KGB) e seus parceiros fundamentalistas em Quetta, no Paquistão, em 4 de fevereiro de 1987.Tradução de parte de um poema de Meena: Eu nunca retornarei Eu sou a mulher que acordouEu ressurgi e me tornei a tempestade das cinzas das minhas crianças queimadasEu ressurgi das marcas do sangue dos meus irmãosA cólera da minha nação me deu forçasMinhas vilas queimadas e arruinadas me encheram de ódio contra o inimigoOh compatriota, não me julgues fraca e incapaz,Minha voz se juntou a milhares de mulheres ressurgidasMeu punho se juntou com punhos dos meus compatriotasPara acabar com todo esse sofrimento, todas as formas de escravidãoEu sou a mulher que acordouEu encontrei o meu caminho e nunca mais retornarei. O legado de Meena permanece vivo Mas nem a morte de Meena foi suficiente para abafar a luta social das mulheres afegãs. O seu legado permanece vivo até hoje na associação, que continua ativa. Em uma entrevista realizada por ativistas do Movimento de Mulheres Curdas com Samia Walid, integrante da RAWA, ela contou que a organização luta contra os fundamentalistas islâmicos afegãos e seus apoiadores internacionais até hoje. “Nossas atividades políticas incluem a publicação de nossas revistas e artigos e a mobilização de mulheres para obter essa consciência e se juntar à nossa luta. Coletamos e documentamos os assassinatos, estupros, saques, extorsões e outros crimes desses senhores da guerra em partes remotas do Afeganistão. Nossas atividades sociais estão fornecendo educação às mulheres (não apenas aulas de alfabetização, mas consciência social e política sobre seus direitos e como alcançá-los), ajuda de emergência, criação de orfanatos e atividades relacionadas à saúde”, explicou Samia. Atualmente, a RAWA ainda trabalha na clandestinidade na maior parte do Afeganistão, mas enfrenta enormes dificuldades. Para garantir a segurança das ativistas, todas as integrantes usam pseudônimos. Apesar dos obstáculos, a associação acredita que é possível continuar com as atividades políticas na maior parte do país, devido ao contato com os habitantes locais. Após o retorno do Talibã ao poder, nas últimas semanas, o grupo conversou com a organização Missão das Mulheres Afegãs. Na entrevista, as integrantes disseram que durante anos, a RAWA se manifestou contra a ocupação dos EUA no Afeganistão. “Nos últimos 20 anos, uma de nossas reivindicações foi o fim da ocupação dos EUA/OTAN e ainda melhor se eles levassem os fundamentalistas islâmicos com eles e deixassem nosso povo decidir seu próprio destino. Esta ocupação resultou apenas em derramamento de sangue, destruição e caos. Eles transformaram nosso país no lugar mais corrupto, inseguro, da máfia das drogas e perigoso, especialmente para as mulheres”, disse. Sobre as recentes entrevistas em que o grupo extremista diz que vai respeitar os direitos das mulheres, desde que elas respeitem a lei islâmica, a associação diz que é totalmente descrente desse cenário. “A mídia corporativa está apenas tentando colocar sal nas feridas de nosso povo devastado, eles deveriam ter vergonha de si mesmos da maneira como tentam adoçar o Talibã brutal. O porta-voz do do grupo declarou que não há diferença entre sua ideologia de 1996 e a de hoje. E o que eles dizem sobre os direitos das mulheres são as frases exatas usadas durante sua regra sombria anterior: implementar a lei Sharia”, explica. O maior medo das ativistas é que o mundo esqueça o Afeganistão e as mulheres afegãs como durante o regime sangrento do Talibã no final dos anos 90. “Vamos levantar nossa voz e continuar nossa resistência e lutar pela democracia secular e pelos direitos das mulheres.” Para realizar doações e apoiar o movimento da associação, é só entrar neste link. ( http://www.afghanwomensmission.org/2010/08/make-a-donation/ ) |